20 de dez. de 2010

e operario disse NÃO!...E o patrão disse Cálice

Caaaaaaaaaaaaaaaaaaaaalle-se        ou ...

 
Cálice Chico Buarque




Vinicius e a sociedade

Essa poesia não tem data, mas pelo conteúdo e força revela o quanto Vinicius era politizado, consciente, critico da repressão, da sensura e de tudo que impedia e impede a sociedade e os que constroem a sociedade de crescer...É bem atual...Eu conheci essa poesia nos tempos de greve na Unicastelo em Maio/10, é imensa  mas vale a pena... Dedico esse poema a todos os meus professores

O OPERARIO EM CONSTRUÇÃO

E  O Diabo, levando-o a um alto monte,
 mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo.
 E disse-lhe : - Dar-te-ei todo este poder e a sua gloria,
porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero;  
portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus,
respondendo, disse-lhe:- Vai-te, Satanás; porque está escrito:
adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás. (Lc.5,5-8)



Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão
Como um passaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão


De fato, como podia
Um operario em construção
Compreender pro que um tijolo
Valia mais do que um pião?
Tijolo ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operario ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Alem uma igreja, á frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreira
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinario:
Que o operario faz a coisa
E a coisa faz o operario.
De forma que, certo dia
Á mesa, ao cortar o pão
O operario foi tomado
De uma subita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
-Garrafa, prato, facão-
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operario,
Um operario em construção,
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo o que existia
Era ele  quem o fazia
Ele, um humilde operario
Um operario em construção
Um operario que sabia
exercer a profissão.

Ah homem de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operario
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operario emocionado
Olhou sua propria mão
Sua rude mão de operario
De operario em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que , tal sua construção
Cresceu também o operario.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
-Exercer a profissão-
O operario adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.




E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operario dizia
Outro operario escutava.
E foi assim que o operario
Do edificio em construção
Que sempre dizia SIM
Começou a dizer NÃO.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:


Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uisque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que seu casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão

E o operario disse: NÃO!
E o operario fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
 As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
-"Convençam-no" do contrário
Disse ele sobre o operario
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte o operario
ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
 o operario disse: NÃO!

Em vão sofrera o operario
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguirão
Muitas outras seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindivel
Ao edificio em construção
Seu trabalho presseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operario
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operario
Fez-lhe esta declaração:


-Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te o tempo de lazer
Dou-te mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se adorares.
E, ainda mais, se abandonares
O que  te faz dizer NÃO!

Disse, e fitou o operario
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operario
O patrão nunca veria.
O operario via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E operario diss: NÃO!

Loucura!- gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
Mentira!- disse o operario
Não podes  dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operario ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus imãos   que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu  no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operario construido
O operario em construção.

(p.317)



mais Vinicius....De repente, não mais que de repente!



Apesar de  escrita antes do primeiro soneto, esse parece responder ao primeiro... Não conheço bem história de Vinicius, mas pelos poemas que ficaram registrados nessa antologia parece que teve muitos amores e desabores....Nos deliciemos com um pouco mais de poesia


SONETO DE SEPARAÇÃO


De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente,  da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.





(Oceano Atlantico, a bordo do Higland Patriot, a caminho da Inglaterra, setembro,1938,p.177)